Entre fendas e sinuosidades...



"(...) Nesse tempo Faulques ainda não se metia nas fendas e sinuosidades do problema, mas já vivia entre intuições, como se andasse com um enxame de mosquitos incómodos zumbindo à sua volta. Fotografas as pessoas à procura das rectas e das curvas que as matarão, dizia [Olvido], rindo-se de repente depois de o observar em silêncio durante algum tempo. Fotografas as coisas procurando os ângulos por onde começarão a desmoronar-se. Vais à caça de cadáveress e de ruínas pressentidas, prematuras. Às vezes, penso que fazes amor comigo com esse desespero desolado e violento porque, abraçando-me, sentes o cadáver que serei um dia, ou que seremos ambos. Estás acabado a médio prazo, Faulques. Começas a deixar de ser um soldado calado e magro. Não o sabes, mas contraíste o vírus que acabará por te impedir de fazer o teu trabalho. Um dia pegarás na máquina fotográfica e, ao olhares pelo visor, só verás linhas, volumes e leis cósmicas. Espero não estar ao teu lado nesse momento, porque ficarás insuportável de tão autista: um arqueiro zen que executa movimentos no ar com as mãos vazias. E se ainda estiver contigo, deixar-te-ei. Tchau. Juro. Detesto os soldados que se interrogam, mas detesto ainda mais os que obtêm respostas. E se alguma coisa me agrada em ti é o silêncio que guardam os teus silêncios, tão semelhante ao das tuas fotografias frias e perfeitas. Não suporto os silêncios clamorosos, percebes?... (...)"


in "O Pintor de Batalhas", de Arturo Pérez-Reverte, pp. 190, tradução de Helena Pitta, Edições ASA, Março de 2007

2 comentários:

Maria Azenha disse...

..."E se alguma coisa me agrada em ti é o silêncio que guardam os teus silêncios..."

um excerto de escrita como um pedaço do universo.


Boa semana para ti,


***maat

lupuscanissignatus disse...

Obrigado, Maat.

Semana luminosa.