A voz da névoa...

Fotografia de V. Solteiro,
Serra do Caramulo,
Janeiro de 2008


Sussurro
impregnado
de aura
e gelo
a voz
da névoa
liquefaz-se
no curvilíneo
dorso
da cumeada
até a sua língua
traçar
com perícia
a silhueta
da noite


V. Solteiro, 29.02.08

Espelhar...



"O mar que em mim se espelha
e em mim se degrada
somente se assemelha
à boca derrotada

pelos usos inúteis
do amor e da fala
Ele reflecte fúteis
as imagens que exala

É o mar que me espelha
o líquido onde nada
à vida se assemelha
como uma fútil fala"

"Espelhos", poema de Gastão Cruz, Faro, 1941
"The sea story", fotografia da autoria de Beata, in http://www.photoforum.ru/

A caminho da claridade...

Fotografia de V. Solteiro,
Serra do Caramulo,
Janeiro de 2008



Ossatura
rendilhada
de urze
e esteva
erguida
aos sulcos
das tempestades
os braços
do dia
repousam
sobre o
evanescente
vestido
de nuvens
até estas
despirem
a claridade


V. Solteiro, 27.02.08



Deltas, cometas e nenúfares...

Fotografia de V. Solteiro,
Serra do Caramulo,
Janeiro de 2008
crepitam
labaredas
quando
sobes
num ápice
aos lábios
da noite
precipitas
monções
quando
os trémulos
dedos
das estrelas
cingem
o peito
das nuvens
um voo
basta
imperceptível
imponderável
para que
as muralhas
cedam
e se abatam
sobre o
regaço
é desse
cristalino
ventre
que brotam
deltas
cometas
e nenúfares
V. Solteiro, 26.02.08

O templo...



"Percorro do teu corpo os templos todos
as colunas os áticos as fontes

Como se de romagem fosse a Roma"



"Percorro do teu corpo os templos todos", poema de david Mourão-Ferreira, Lisboa, 1927-1996

"Temple", fotografia de Peter Bernet, in http://www.photoforum.ru/

A memória arrancada...


"(...) Dizem os entendidos que a aldeia nasceu e cresceu ao longo de uma vereda, de uma azinhaga, termo que vem de uma palavra árabe, as-zinaik,'rua estreita', o que em sentido literal não poderia ter sido naqueles começos, pois uma rua, seja estreita, seja larga, sempre será uma rua, ao passo que uma vereda nunca será mais que um atalho, um desvio para chegar mais depressa aonde se pretende, e em geral sem outro futuro nem desmedidas ambições de distância. Ignoro em que altura se terá introduzido na região o cultivo extensivo da oliveira, mas não duvido, porque assim o afirmava a tradição pela boca dos velhos, de que por cima dos mais antigos daqueles olivais já teriam passado, pelo menos, dois ou três séculos. Não passarão outros. Hectares e hectares de terra plantados de oliveiras foram impiedosamente rasoirados há alguns anos, cortaram-se centenas de milhares de árvores, extirparam-se do solo profundo, ou ali se deixaram a apodrecer, as velhas raízes que, durante gerações e gerações, haviam dado luz às candeias e sabor ao caldo. Por cada pé de oliveira arrancado, a Comunidade Europeia pagou um prémio aos proprietários das terras, na sua grande maioria grandes latifundiários, e hoje, em lugar dos misteriosos e vagamente inquietantes olivais do meu tempo de criança e adolescente, em lugar dos troncos retorcidos, cobertos de musgo e líquenes, esburacados de locas onde se acoitavam os lagartos, em lugar dos dosséis de ramos carregados de azeitonas negras e de pássaros, o que se nos apresenta aos olhos é um enorme, um monótono, um interminável campo de milho híbrido, todo com a mesma altura, talvez com o mesmo número de folhas nas canoilas, e amanhã talvez com a mesma disposição e o mesmo número de maçarocas, e cada maçaroca talvez com o mesmo número de bagos. Não estou a queixar-me, não estou a chorar a perda de algo que nem sequer me pertencia, estou só a tentar explicar que esta paisagem não é minha, que não foi neste sítio que nasci, que não me criei aqui (...)."


José Saramago, in "As Pequenas Memórias", pp 13-14, Editora Caminho, 2006

O poder rói...


"O poder rói as células da bondade humana para as transformar em crueldade pura."


Inês Pedrosa, in revista "Única", Expresso, 04.10.03, sobre o filme de Lars Von Trier, "Dogville".
"Human Being", fotografia de A. Girao, in http://www.photoforum.ru/

Tudo se cala...


"Uma cadeira feita de madeira, e não
de palavras sobre uma cadeira.
Um Deus feito de Deus, e não de palavras.
Os poemas da respiração, o caminho
do caminhar.
Troco umas palavras (como Petrarca)
com os vermes dentro da madeira
que minuciosos
fazem o seu trabalho.
Deles aprendo um dialecto obscuro

(...)

Ponho-me de lado, espreito um movimento
novo que é a palavra do olhar.
Tudo se cala."



Israël Eliraz, in "Hölderlin"
"When you need no words", fotografia de Alex Vinnik, in http://www.photoforum.ru/

Zero 7: música que flutua no firmamento...

Coisas simples...



"(...) Naquele dia a oliveira,]
o vinho novo,
a canção do meu amigo,]
o meu amor à distância,]
a terra humedecida,]
tudo era tão simples,]
tão eterno
como o grão do trigo]

(...)

a paz recebia-me]
com um sabor de azeite e vinho,]
enquanto tudo era simples como o povo
que me entregava
o seu tesouro verde:
as pequenas oliveiras,
frescura, sabor puro,
medida deliciosa,
mamilo do dia azul,
amor terrestre."



Excerto do poema "Os Frutos", de Pablo Neruda, in "As Uvas e o Vento", tradução de Albano Martins, Edição Campo das Letras, 2007

"Simple beauty", fotografia de Alexander Lazouski, in http://www.photoforum.ru/

O jardim dos segredos...

"O segredo não é correr atrás das borboletas...É cuidar do jardim para que elas venham até você."

Mário Quintana, poeta e escritor brasileiro
"Common Blue Butterflies Mating", de Mike Baldwin, in http://www.photoforum.ru/

Nick Drake: o brilho desprende-se da voz...

No Portugal de hoje...


"Alguns têm um grande sonho e faltam a esse sonho. Outros não têm sonho nenhum e faltam a esse também. No Portugal de hoje não há nenhum sonho, mas mesmo a esse se falta."


Bernardo Soares

"View from the S. Vicente cape", fotografia de estima, in http://www.photoforum.ru/

Nick Cave & the Bad Seeds:as raízes do amor...

Dizer o mundo...

"Se alguém te perguntar o que quiseste dizer com um poema, pergunta-lhe o que Deus quis dizer com este mundo..."


Mário Quintana, poeta e escritor brasileiro
"Japanese poem", fotografia de Petr Zakharov

Efémero corpo...



de que serve a palavra
senão para nos relembrar
que a nossa morada
é um templo
erigido
e erodido
pelo pó
da memória




V. Solteiro, 08.02.08
"Dust Games", fotografia de Anna Games V.A.V., in http://www.photoforum.ru/

A embriaguez das sombras...

Photobucket
Envoltos
pelas áridas
avenidas
da solidão
os desabrigados
da civilização
estendem
o manto
do desencanto
e do infortúnio
sob as fachadas
de bruma


Pressentindo
outros vultos
rondando
as geométricas
esquinas
do gelo
eles aquecem

e esquecem
o seu franzino
corpo
nas labaredas
dos livros


É com a sua
inflamável
matéria
e sedento
volume
que eles
desfolham
as caves da
memória
e decifram
o brilho
do lume


Rodopiando
sob as suas
cabeças
as faúlhas
dos poetas
evolam-se
etéreas
acendendo
o ventre
da noite


Embriagados
de sono
e de sombras
há quem
nelas vislumbre
a face
das estrelas


Poema e fotografia de
V. Solteiro, 01.02.08


Também o amor se aprende...



"O casamento, como a vida inteira, é algo terrivelmente difícil que é preciso tornar a começar do princípio cada dia, todos os dias da nossa vida. O esforço é permanente, e inclusive muitas vezes esgotante, mas vale a pena. Uma personagem de um qualquer dos meus romances di-lo de uma maneira mais crua:'Também o amor se aprende.'"



Gabriel García Marquéz, in "O Aroma da Goiaba", Editora Dom Quixote, 2005

"Love! Love...", fotografia de Dmitri Dikikh, in http://www.photoforum.ru/

Espera-me a primavera...



"(...) Sou a testemunha que vem
visitar a vossa morada.
Oferecei-me a paz e o vinho.

Amanhã cedo partirei.

Espera-me em toda a parte
a primavera."



Excerto do poema "Palavras para a Europa", de Pablo Neruda, in "As Uvas e o Vento", tradução de Albano Martins, Editora Campo das Letras, 2007
"Spring", fotografia de Miguel Nicolaevky, in http://www.photoforu.ru/

O rosto da manhã...

Fotografia de V. Solteiro,
Serra do Caramulo,
Janeiro de 2008
"As pérolas do rosto da manhã são lágrimas da noite...
A fonte da manhã, com as suas pérolas..."
Pensamento de Maat

Oferenda

Fotografia de V. Solteiro,
Serra do Caramulo,
Janeiro de 2008

espelhar

a Paz

que se reflecte

sobre estas fragas

é demanda

sem tempo

nem termo

fico-me

pelo labor

do artesão

ante a obra

inacabada

com dedos

trémulos

moldo

a argila

dos penhascos

à lingua

dos pássaros

e ofereço-vos

um carvalho

de asas

(com raízes

presas

à quietude)

V. Solteiro, 01.02.08