"(...) As palavras, medula de uma civilização de que me orgulho, perderam o sentido, de tanto serem desonradas. Mentem-nos, numa aterradora avalancha, e celebram a injustiça com a exigência segundo a qual temos de nos sacrificar ainda mais (...). E muitas vozes se calaram numa submissão a antever servidões ainda mais desprezíveis (...). Não há política sem ética, cansaram-se de dizer três dos nossos maiores: Herculano, Antero e Sérgio. A propensão de servir, a rectidão de carácter, a vocação para a fidedignidade, a instância de comportamento cívico foram ensinamentos desejadamente ecoantes, mas lamentavelmente desprezados por Governos vergonhosos (...). A mentira nunca sustentou o poder por muito tempo (...)."
Baptista Bastos, in Jornal de Negócios, numa crónica intitulada "Carta aos Dilectos"
Fotografia sem título de Avraham Koloyarski, in http://www.photoforum.ru/
A linguagem da violência...
"Há uma linguagem universal para as ideologias trocarem as suas opiniões. Essa linguagem é o tiro."
Vergílio Ferreira, escritor
Vergílio Ferreira, escritor
"Machine gun fire", fotografia de Steve Lewis, in http://www.photoforum.ru/
Entre nós...
"Às vezes se te lembras procurava-te
retinha-te esgotava-te e se te não perdia
era só por haver-te já perdido ao encontrar-te
Nada no fundo tinha que dizer-te
e para ver-te verdadeiramente
e na tua visão me comprazer
indispensável era evitar ter-te
Era tudo tão simples quando te esperava
tão disponível como então eu estava
Mas hoje há os papéis há as voltas a dar
há gente à minha volta há a gravata
Misturei muitas coisas com a tua imagem
Tu és a mesma mas nem imaginas
como mudou aquele que te esperava
Tu sabes como era se soubesses como é
Numa vida tão curta mudei tanto
que é com certo espanto que no espelho de manhã
distraído diviso a cara que me resta
depois de tudo quanto o tempo me levou
Eu tinha uma cidade tinha o nome de madrid
havia as ruas as pessoas o anonimato
os bares os cinemas os museus
um dia vi-te e desde então madrid
se porventura tem ainda para mim sentido
é ser a solidão que te rodeia a ti
Mas o preço que pago por te ter
é ter-te apenas quanto poder ver-te
e ao ver-te saber que vou deixar de ver-te
Sou muito pobre tenho só por mim
no meio destas ruas e do pão e dos jornais
este sol de janeiro e alguns amigos mais
Mesmo agora te vejo e mesmo ao ver-te não te vejo
pois sei que dentro em pouco deixarei de ver-te
Eu aprendi a ver na minha infância
vim a saber mais tarde a importância desse verbo para os
gregos
e penso que se bach hoje nascesse
em vez de ter composto aquele prelúdio e fuga em ré maior
que esta mesma tarde num concerto ouvi
teria concebido aqueles sweet hunters
que esta noite vi no cinema rosales
Vejo-te agora vi-te ontem e anteontem
e penso que se nunca a bem dizer te vejo
se fosse além de ver-te sem remédio te perdia
Mas eu dizia que te via aqui e acolá
e quando te não via dependia
do momento marcado para ver-te
Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te
e antes de chegares já lá estavas
naquele preciso sítio combinado
onde sempre chegavas sempre tarde
ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses
se ausente mais presente pela expectativa
por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente
Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?
Aquela hora certa aquele lugar?
À força de o pensar penso que não
Na melhor das hipóteses estou longe
qualquer de nós terá talvez morrido
No fundo quem nos visse àquela hora
à saída do metro de serrano
sensivelmente em frente daquele bar
poderia pensar que éramos reais
pontos materiais de referência
como as árvores ou os candeeiros
Talvez pensasse que naqueles encontros
em que talvez no fundo procurássemos
o encontro profundo com nós mesmos
haveria entre nós um verdadeiro encontro
como o que apenas temos nos encontros
que vemos entre os outros onde só afinal somos felizes
Isso era por exemplo o que me acontecia
quando há anos nas manhãs de roma
entre os pinheiros ainda indecisos
do meu perdido parque de villa borghese
eu via essa mulher e esse homem
que naqueles encontros pontuais
decerto não seriam tão felizes como neles eu
pois a felicidade para nós possível
é sempre a que sonhamos que há nos outros
Até que certo dia não sei bem
ou não passei por lá ou eles não foram
nunca mais foram nunca mais passei por lá
Passamos como tudo sem remédio passa
e um dia decerto mesmo duvidamos
dia não tão distante como nós pensamos
se estivemos ali se madrid existiu
Se portanto chegares tu primeiro porventura
alguma vez daqui a alguns anos
junto de califórnia vinte e um
que não te admires se olhares e me não vires
Estarei longe talvez tenha envelhecido
terei até talvez mesmo morrido
Não te deixes ficar sequer à minha espera
não telefones não marques o número
ele terá mudado a casa será outra
Nada penses ou faças vai-te embora
tu serás nessa altura jovem como agora
tu serás sempre a mesma fresca jovem pura
que alaga de luz todos os olhos
que exibe o sossego dos antigos templos
e que resiste ao tempo como a pedra
que vê passar os dias um por um
que contempla a sucessão da escuridão e luz
e assiste ao assalto pelo sol
daquele poder que pertencia à lua
que transfigura em luxo o próprio lixo
que tão de leve vive que nem dão por ela
as parcas implacáveis para os outros
que embora tudo mude nunca muda
ou se mudar que se não lembre de morrer
ou que enfim morra mas que não me desiluda
Dizia que ao chegar se olhares e não me vires
nada penses ou faças vai-te embora
eu não te faço falta e não tem sentido
esperares por quem talvez tenha morrido
ou nem sequer talvez tenha existido"
"Muriel", poema de Ruy Belo
"The Lovers", fotografia de Robert-Alexandre Gravet, in http://www.photoforum.ru/
Círculos...
" (...) É a própria ideia de Portugal que é muito extremada. Talvez pelo passado de grandeza, temos dificuldade em perceber qual é o nosso lugar no Mundo e na Europa. Que é geograficamente periférico, mas não há só a periferia e o centro do mundo. Há vários círculos, e Portugal estará num deles. Não somos os melhores nem os piores. Somos nós (...)."
José Luís Peixoto, escritor, in Jornal de Letras, 20.12.06
José Luís Peixoto, escritor, in Jornal de Letras, 20.12.06
"Circles of time", de Marianna Dugaeva, in http://www.photoforum.ru/
Ao espelho...
"Um pátria não deve nada a ninguém em particular. Ela deve tudo a todos."
Eduardo Lourenço, in "O Labirinto da Saudade"
"RGB", fotografia de Vladimir, in http://www.photoforum.ru/
Minúcias...
"Por minúcias nascemos e morremos, por minúcias praticamos o mal, é por minúcias que fazemos vítimas."
Ruy Belo numa carta a Pedro Tamen datada de 15-03-65, in jornal "Público", 08-08-08
"Modern weapon", fotografia de John Doe, in http://www.photoforum.ru/
O nosso mundo é este...
"O nosso mundo é este
vil e suado
dos dedos dos homens
sujos de morte.
Um mundo forrado
de pele de mãos
com pedras roídas
das nossas sombras.
Um mundo lodoso
do suor dos outros
e sangue nos ecos
colados nos passos...
Um mundo tocado
dos nossos olhos
a chorarem musgo
de lágrimas podres...
Um mundo de cárceres
com grades de súplica
e o vento a soprar
nos muros de gritos.
Um mundo de látegos
e vielas negras
com braços de fome
a saírem das pedras...
O nosso mundo é este
suado de morte
e não o das árvores
floridas de música
a ignorarem
que vão morrer.
E se soubessem,
dariam flor?
Pois os homens sabem
e cantam e cantam
com morte e suor.
O nosso mundo é este...
(Mas há-de ser outro.)"
Poema "XVI", de José Gomes Ferreira, in "Panfleto Contra a Paisagem", 1936-1937
"MInd prison", fotografia de Paul Bracey, in http://www.photoforum.ru/
A substância da música...
"A música que ouço depois do jantar não é um lenitivo do silêncio, mas algo semelhante à sua substancialização:ouvir música uma ou duas horas todas as noites não me priva do silêncio; pelo contrário, a música é o silêncio a tornar-se realidade."
in "A Mancha Humana", de Philip Roth
"Lines of Music", fotografia de Norbert Dabkowski, in http://www.photoforum.ru/
O riso de um rio...
Fotografia de V. Solteiro
captar o tempo numa nova moldura. emoldurar o espaço de esperanças que não sejam vãs. vacilar, mas não temer. navegar é sulcar o perecer. reconhecer no rio as margens de um outro. rio. a bandeiras despregadas. furo a carapaça de gelo. cruzo antiquíssimas estradas. icebergue à deriva em árticas membranas. desperto, esboço renovados desassossegos. da nascente à foz. ganho novo alento. ao relento, espraio-me com as estrelas pelo estuário. a custo me aguento. são múltiplas as barragens que nos impedem de ver o mar. lamento, deixa-o ir na corrente. lança âncora nas águas do pensamento.
V. Solteiro, 10.08.08
As vestes da montanha...
Fotografia de V. Solteiro
tímida como o orvalho aos primeiros raios de sol, cobres o corpo nu com longas vestes perfumadas de urze e alfazema. assim leve e vaporosa, debruada a ouro e mel, a colina do teu sinuoso corpo é fonte imperecível do pólen mais fino e inebriante.
V. Solteiro, 10.08.08
A ponte é uma passagem... II
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