A fonte da (in)quietação


"Tenho no coração uma necessidade de comunicação, de comunhão, que me inquieta. Morro por beber na fonte dos outros. Para qualquer lado que me vire, sinto-me em estado de carência."

Henri Troyat, escritor e historiador francês
"Source", fotografia de Remi Aerts, in http://www.photoforum.ru/

Respirar o silêncio...



Emergimos
no silêncio
que as palavras
inspiram

Submergimos
na imanência
que as palavras
transpiram

É nessa respiração
matricial
que irrompe
do ventre
da Terra
que cavamos
os alicerces
da ternura

É nesse oxigénio
matricial
que sopra
o vento
da mudança

E absorvemos
a realidade
exausta
e suspirada



V. Solteiro, 31.10.07
"Breathe autumn", fotografia de Arman Zhenikeyev, in http://www.photoforum.ru/

Há uma Palavra-Pessoa...



"Há uma palavra pessoa
Uma palavra pregada ao silêncio de dizer-se como
nunca fora ouvida"


"Homens", poema de Daniel Faria, in "Legenda para uma casa habitada"
"Good old school", fotografia de Luguesio Melo, in http://www.photoforum.ru/

Todas as formas de amor...

"Creio, sim, na acção individual, no gesto de simpatia e de entreajuda, pessoa a pessoa, em todas as formas de amor."

Urbano Tavares Rodrigues, escritor
"Help me", fotografia de Andrei Blank, in http://photoforum.ru/

O eco dos búzios...



Frontes içadas às marés
ânforas perdidas
na vastidão da orla
os búzios uniram-se
num abraço alteroso
e ondulante de algas


(Rumor de ecos
primiciais)


Alinhados
pelos veias
do horizonte
as suas âncoras
fundearam diante
daquele imenso
manto de luz


Até os seus ecos
se abotoarem
de galáxias


V. Solteiro, 29.10.07

Fotografia de Lena Berntsen, intitulada "Sea Life", in http://www.photoforum.ru/


Um pequeno nada que é tudo...


"Pode-se facilmente julgar o carácter de um homem pela maneira como trata os que nada podem fazer por ele."

Mark Twain, escritor norte-americano



http://pt.wikipedia.org/wiki/Mark_twain




Outro mundo é possível...

Há imagens que respiram... (II)

Fotografia de Diane Green Lent http://dianelent.com
http://www.oct27.org/
100 mil marcharam contra a guerra por toda a América...

Há imagens que respiram... (I)

Fotografia de Diane Green Lent http://dianelent.com/
Sábado passado foi assim em onze cidades americanas...

Há imagens que sangram...

Fotografia de Charles Dharapak/Associated Press

A voz da maresia...


Já passaram muitos anos desde que o descobri. Tudo aconteceu de forma casual, no jornal "Blitz". Ao desfolhar uma das páginas, deparei com uma foto sua, onde aparece, cabisbaixo, fumando um cigarro, todo ele vestido de negro, passeando por aquilo de parece ser uma praia (ou será um deserto?). O que mais me impressionou foi o ar triste e desolado.
Já passaram muitos anos desde esse encontro e, ainda hoje, quando revisito as suas músicas, melancólicas e lânguidas, é como se Nick Drake estivesse aqui a meu lado, longo casaco negro vogando ao vento, cantando como quem dialoga com as marés da alma...

http://pt.wikipedia.org/wiki/Nick_Drake

Nick Drake: o homem que falava com a lua...

No escuro...

Vislumbro
no incan
descente
escuro
as rugas
das nuvens

Um ínfimo
feixe
de luz

Um íntimo
espaço
que seduz

Ângulo
Tecitura
Fibra
Conjectura

A noite
é um corpo
que perdura
no labirinto
da saudade

É na linha
contínua
das suas
formas
que traço
a diagonal
dos ombros

É nos fios
que sustêm
as estrelas
que acendo
o rastilho
dos dedos

V. Solteiro, 26.10.07
"Dancing in the dark", fotografia de Zeca, in http://www.photoforum.ru/

Mulher cetim, mulher firmeza...



"Onde uma tem
O cetim
A outra tem a rudeza

Onde uma tem
A cantiga
A outra tem a firmeza

Tomba o cabelo
Nos ombros

O suor pela
Barriga

Onde uma tem
A riqueza
A outra tem
A fadiga

Tapa a nudez
Com as mãos

Procura o pão
Na gaveta

Onde uma tem
O vestígio
Tem a outra
A pele seca

Enquanto desliza
O fato
Pega a outra na
Enxada

Enquanto dorme
Na cama
A outra arranja-lhe
A casa"



"Pequena Cantiga à Mulher", poema de Maria Teresa Horta
"Body and hands", fotografia de Evgeny Brook, in http://www.photoforum.ru/
http://pt.wikipedia.org/wiki/Maria_teresa_horta

O espelho das palavras

"Nenhum espelho reflecte melhor a imagem do homem do que as suas palavras."

Juan Vives, filósofo espanhol

"Mirror", fotografia de Taras, in http://www.photoforum.ru/
http://pt.wikipedia.org/wiki/Juan_Lu%C3%ADs_Vives


Anatomia da natureza...


Entre
laço-me
em coisas
fúteis
e in
significantes

No tronco
de um castanheiro
Nas ramificações
de uma amendoeira
Na elegância
de um cipreste

Não é essencial
que tenham
um porte
altivo
ou monumental

Importa é que
despontem
das entranhas
da Terra

En
laço-me
em particular
pelas
margens
que o tempo
renegou

Pelos cristais da neve
Pelo voo da águia
Pelo som da água
Pelo fragor do bosque

É assim
entrelaçado
com o efémero
e enlaçado
com o infinito
que me procuro
e me descubro

E me fito

(nas vidraças
embaciadas
pela aragem
do rio)


V. Solteiro, 24.10.07
"The connected legs", fotografia de Kristina Buceatchi, in http://www.photoforum.ru/

Levanta-se da rocha a flor esmagada...


"Levanta-se da rocha a flor esmagada
Mais dura do que a rocha e cristalina.
Raízes, caule, pétalas, angústia.

Raízes para sempre ali cravadas,
Caule verticalmente inexorável,
Pétalas miraculosas: pura água.

Minhas mãos são chagas
Para te colher...
Minhas mãos são chamas,
pedaços de gelo...

Levanta-se da rocha a flor esmagada."


"Prelúdio", poema de Cristovam Pavia, Lisboa, 1933-1968

Danças Ocultas: a concertina dança, salta e rodopia...

A programação segue dentro de momentos...


"Não me considero um cínico, mas sei que me coube viver numa época que considera a ingenuidade uma causa perdida, e o acaso é apresentado como um sucedâneo da vontade. Tudo parece programado de antemão e, lentamente, perdemos a capacidade de nos deixarmos surpreender, de aceitar que o insólito é possível."

Luís Sepúlveda, in "Encontro de Amor num País em Guerra", edições ASA

Dar vida à arte...dar arte à vida...


"Faz-se arte em toda a parte. A arte é, portanto, também um objecto, mas não é um objecto qualquer. A arte é um objecto estético, feito para ser visto a apreciado pelo seu valor intrínseco. As suas características especiais fazem da arte um objecto á parte, por isso mesmo muitas vezes colocado à parte, longe da vida quotidiana, em museus, igrejas ou cavernas. E o que se entende por estético? A estética costuma ser definida como 'dizendo respeito ao que é belo'. É claro que nem toda a arte é bela aos nossos olhos, mas não deixa por isso de ser arte."


H.W. Janson, in "História da Arte", Fundação Calouste Gulbenkian, 2005
Fotografia da obra de Pablo Picasso, intitulada
"Cabeça de Touro", de 1943, moldagem em bronze de partes de bicicleta.

Ouvi dizer...

"Ouvi dizer que o nosso amor acabou
pois eu não tive a noção do seu fim
pelo que eu já tentei eu não vou vê-lo em mim
se eu não tive a noção de ver nascer um homem
e ao que eu vejo
tudo foi para ti
uma estúpida canção que só eu ouvi
e eu fiquei com tanto para dar
e agora
não vais achar nada bem
que eu pague a conta em raiva
e pudesse eu pagar de outra forma

ouvi dizer que o mundo acaba amanhã
e eu tinha tantos planos para depois
fui eu quem virou as páginas
na pressa de chegar até nós
sem tirar das palavras seu cruel sentido
sobre a razão estar cega
resta-me apenas uma razão
um dia vais ser tu
e um homem como tu
como eu não fui
um dia vou-te ouvir dizer
e pudesse eu pagar de outra forma
sei que um dia vais dizer
e pudesse eu pagar de outra forma

a cidade está deserta
e alguém escreveu o teu nome em toda a parte
nas casas, nos carros, nas pontes, nas ruas
em todo o lado essa palavra
repetida ao expoente da loucura
ora amarga, ora doce
para nos lembrar que o amor é uma doença
quando nele julgamos ver a nossa cura"



"Ouvi dizer...", letra de Manuel Cruz, músico dos extintos Ornatos Violeta; a interpretação conta com a participação de Vítor Espadinha; inserta no álbum "O monstro precisa de amigos".

"Signs of Love", fotografia de Nikola Proynov, in http://www.photoforum.ru/

Ornatos Violeta:a cidade está deserta...

O défice do Ser!



Fontes sob
anoni
mato
confirmam
o que se temia:

O orçamento
é um ornamento
que esconde
a pobreza
do dia-a-dia!

O orçamento
é um tempo
que omite
a voz rasurada
da maioria!

A colecção
Outono-Inverno
de dois mil e sete
in all Portugal
apresenta
a seguinte ementa:

Desigualdades!
Pobreza!
Desequilíbrios!
Desemprego!
Precariedade!
Instabilidade!

O ritual dos
sacrifícios
não tem idade!

Seu fim
primeiro
é ocultar
a verdade
sob o manto
diáfano
da estabilidade.

Feitas bem
as contas
os números
enganam
o mais
precavido!

Feitas bem
as contas
os números
esganam
os sempre
preteridos!

O orçamento
geral
está
em particular
estado
de sítio!

Sentados
no lugar errado
dos bólides
de alta cilidranda
os orçamentistas
vivem
alheados
do que é
essencial:

A parcela da Humanidade!

A parcela de Humanidade!

Os en
cargos
dos Ministérios
são um autêntico
mistério!

A defesa -
área vital
para que corra
o sangue
da nação -
leva no estômago farto
uma fatia de leão!

A saúde
A educação
O ambiente
A cultura
- são um mero
apêndice de latão!

O diabo
dos números
escondem
o inverno
da injustiça:

dois milhões
de pobres;
meio milhão
de desempregados;
o fosso mais profundo
entre ricos e pobres.

Os défices
definham-nos!

Postos na
microscópica lente
do deve e do haver
os abusos são
a certidão de óbito
do Ser!


V. Solteiro, 19.10.07
Gravura retirada da revista Visão Online, edição nº 682, 30.03.06

O país das sombras...

"É preciso lembrar. É preciso combater o país das sombras e da amnésia..."


Fernando Paulouro das Neves, in Jornal do Fundão

Ala dos Namorados: os caçadores de sóis

Lutar contra a resignação...


"O pior castigo não é entregar-se sem lutar. O pior castigo é entregar-se sem ter podido lutar. É como atirar a toalha para dentro do ringue por ausência de contendor e, embora levantem a mão ao pugilista entre bocejos, a sensação de derrota perdura até se transformar em resignação."


Luís Sepúlveda, in "Encontro de Amor num País em Guerra", edições ASA

"Fight till the end", fotografia de Pavel Janczak, in http://www.photoforum.ru/

Os lugares habitam (n)o Homem...



"Tantas vezes os lugares habitam no Homem
e os homens tantas vezes habitam
nos lugares que os habitam, que podia
dizer-se que o cárcere de Sócrates,
estando nele Sócrates, não o era,
como diz Séneca em epístola a Hélvia.


Por isso cada lugar nos mostra
uma vida clara e desmedida
enquanto o Tempo oscila e nos oculta
que é curto e ambíguo
porque nos dá a morte e a vida.


E os lugares somente acabam
porque é mortal cada homem
que houve em si algum lugar."


"Canto dos Lugares", poema de Fiama Hasse Pais Brandão
"Quem sobe o Douro", fotografia de Álvaro Giesta, in http://www.photoforum.ru/

A cultura re-vive a-trás-dos-Montes...



A Associação ALDEIA tem programadas uma série de acções e iniciativas de cariz social, cultural e ambiental que vale a pena conhecer e, se possível, por dentro. Eis a prova de que no interior, longe dos centros de decisão, também se promove o desenvolvimento equilibrado e sustentável. Sem empreendimentos imobiliários, campos de golfe ou barragens...


Curso: Introdução à Identificação e Conservação de Cogumelos Silvestres,
4ª Edição, Podence, Macedo de Cavaleiros. 17 e 18 de Novembro de 2007

Toda a informação em http://www.aldeia.org/portal/PT/5/EID/76/DETID/2/default.aspx


Workshop Prático de Recuperação de Animais Silvestres, 4ª edição, 30 de Novembro a 2 de Dezembro de 2007, Gouveia/Seia, Parque Natural da Serra da Estrela

Toda a informação em http://www.aldeia.org/portal/PT/5/EID/75/DETID/1/default.aspx


Anamnesis - Encontro de Cinema, Som e Tradição Oral, Vimioso, de 1 a 4 de Novembro

Toda a informação em http://associartecine.blogspot.com/



1º Congresso Internacional da Gaita de Foles Mirandesa Vimioso e Miranda do Douro, 1 a 4 de Novembro de 2007

Ver programa aqui



Contactos:

ALDEIA - Acção, Liberdade, Desenvolvimento, Educação, Investigação e Ambiente
Apartado 29 5230-314 Vimioso
Tel: 919457984 / 966151131
Correio electrónico: aldeiamail@gmail.com http://www.aldeia.org

A soma dos catetos é igual à dos afectos...


"a avaliar pelas rosas]
no canteiro]

de
um
cateto

pitágoras de siracusa falou assim]
aos seus netos:

"o quadrado da hipotenusa]
é igual à soma dos quadrados]
dos catetos."

depois
como se lhe tivesse
dado um ai,

pitágoras retirou-se
foi
repousar para a câmara escura."



"Uma ilustração para o Teorema de Pitágora", poema de Maria Azenha, in "PIM - Poemas de Intervenção e Manicómio", Universitária Editora, 2000
"Theorem of Pitagora", fotografia de Guido Stocco, in http://www.photoforum.ru/

Entrar, ver e sair...



"A vida é como uma sala de espectáculos: entra-se, vê-se e sai-se."

Pitágoras, filósofo e matemático grego
"Theater", fotografia de Geoffrey Demarquet, in http://www.photoforum.ru/

A vida não se explica...



"Sou um mero espectador da vida, que não tenta explicá-la."

Raúl Brandão, escritor, in "Memórias - Volume I"
Fotografia de Honey, denominada "L' automne", in www.olhares.com

A gradação da sabedoria...

"O que é preciso é alcançar a serenidade de uma vida já sem ilusões, a aceitação quase sorridente da desgraça. A sabedoria plena."

Augusto Abelaira, escritor e jornalista

Fotografia de Aleksandr S. Khachunts, intitulada "Gradient of illusions": http://www.photoforum.ru/

A voz desagua como um rio...


"Palavras,
só palavras, nada mais]
que a vã matéria, o seu sentido]
eco de muitos ecos, repetido]
reflexo de poderes tão irreais]

como essas emoções graças às quais]
terei de vez em quando pretendido]
dizer um só segredo a um só ouvido
ciente de que nunca são iguais

os segredos e ouvidos que procuro
às cegas neste mar sempre obscuro
onde a voz desagua como um rio

sem nascente nem foz - apenas uma
incerta confidência que se esfuma
e só foi minha enquanto me fugiu."

"Arte Poética", poema de Fernando Pinto do Amaral
Fotografia de Chris Bazil, intitulada "Moonlight on the Rio Grande", in http://photoforum.ru/

O sabor da terra...

"As gentes da aldeia, sempre ouvi dizê-lo, têm um rio nos olhos, entra-lhes pelos ouvidos dentro o rumor da sua água, nas narinas os cheiros dos limos e das romãs, na boca o sabor da terra."

Francisco José Viegas, escritor e jornalista

Fotografia de Raúl Coelho, intitulada "Puro e simples agricultor Transmontano na sua lide...", in www.olhares.com

Navio de espelhos

A carícia dos frutos....


"Há frutos que é preciso

acariciar

com os dedos com

a língua


e só depois

muito depois


se deixam morder"


"Diospiros", poema de Jorge Sousa Braga, in "Balas de Pólen", Quasi Edições, 2001
Biografia do poeta:http://poesiailimitada.blogspot.com/2006/01/jorge-sousa-braga.html
Imagem retirada daqui: http://www.lsu.edu/

Rufus Wainwright:a voz arde as estrelas...

Há palavras acesas como barcos...


"Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar]
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita


Entre nós e as palavras, os emparedados

e entre nós e as palavras, o nosso dever falar


"You are welcome to Elsinore", poema de Mário Cesariny


Fotografia de Nastya Savelievskih, intitulada "Words through the glass": http://www.photoforum.ru/


Há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida...

A noite...



"A noite veio de dentro, começou a surgir do interior]
de cada um dos objectos e a envolvê-los no seu halo negro.]
Não tardou que as trevas irradiassem das nossas próprias
entranhas, quase que assobiavam ao cruzar-nos os poros.]
Seriam umas duas ou três da tarde e nós sentíamo-las]
crescendo a toda a nossa volta. Qualquer que fosse a pers-]
pectiva, as trevas bifurcavam-na: daí a sensação de que,]
apesar de a noite também se desprender das coisas, havia]
nela algo de essencialmente humano, visceral. Como ins-]
tantes exteriores que procurassem integrar-se na trama]
do tempo, sucediam-se os relâmpagos: era a luz da tarde,
num estertor, a emergir intermitentemente à superfície das]
coisas. Foi nessa altura que a visão se começou a fazer]
pelas raízes. As imagens eram sugadas a partir do que]
dentro de cada objecto ainda não se indiferenciara da luz]
e, após complicadíssimos processos, imprimiam-se nos]
olhos. Unidos aos relâmpagos, rompíamos então a custo]
a treva nasalada."

"A noite", poema de Luís Miguel Nava, in "O céu sob as entranhas" e "Poesia Completa - 1979-1994", Publicações Dom Quixote, 2002
Fotografia de Refrite, denominada "Night", in http://www.photobucket.com/
http://pt.wikipedia.org/wiki/Luís_miguel_nava

Na terra dos sentimentos...

"Nómada incurável na terra dos sentimentos, a paz do lar nunca seria a minha paz, nem a ordem doméstica a minha ordem. Separava-nos um fosso da largura da imaginação."

Miguel Torga

No silêncio das águas...


"Em ti, o poema, o amplo tecido de água ou a forma]
do segredo. Outrora conheceste a margem abandonada]
do desejo, a sua extensão e principias a entregar]
os vasos alongados para receberes as mãos das chuvas.]


Apagaram-se junto aos olhos as praias, as árvores]
que se ergueram um dia sobre as estradas romanas,]
o vestígio dos útimos peregrinos, aves nuas
que já desceram, cansadas, pelo interior do teu peito.]


Uma voz, no silêncio calmo das águas, esquece
a mentira das primeiras colheitas, onde os nossos gestos]
perderam os sorrisos ou o orvalho que os cerca.


Serenamente, começaram a fechar-se os sonhos de Deus]
no interior de novos frutos e, abandonado, fico
junto do teu corpo, onde principia a sombra deste poema.]"


Poema de Fernando Guimarães, in «Poesias Completas, Vol. I: 1952-1988», Afrontamento, Porto, 1994
"View of the Dudhsagar Falls in East Goa, South Indi", fotografia de Hélder Filipe, in http://www.olhares.com/

A felicidade é um dever...

"Só se tem uma vida, portanto há que vivê-la de uma forma digna. Sem nos desprezarmos. E tendo em conta que a felicidade é um dever."

Fernando Namora, escritor
Fotografia de Bubbles in www.olhares.com

Manual de espeleologia



Pesadas
fundas
cavernosas
as horas
afundam-se
nas rugas
da página
até a
esferográfica
adormecer
de cansaço

Crio
Desfaço
Reinicio
Desfaleço

Tudo me soa baço
- até o recomeço

Espeleólogo
de vocábulos
sondo
o ar e o espaço
até vislumbrar
a claridade

Emaranhado
no novelo
desfio-me
desafio-me

Como
desatar
este laço?


V. Solteiro, 09.10.07
Fotografia de Ed Kuchek, intitulada "Stalactite Cave" : http://www.photoforum.ru/