Uma ideia [fixa]


























Luzia tinha uma ideia fixa.
Mobilizava-a a possibilidade de articulação
de um dialecto de afectos:
instilar na boca dos homens
o perfume das magnólias.
Esse era o botão que a impelia a desabrochar
do chão estéril de pétalas em que se movia.
Pouco a importunava que na rua ou nos
estabelecimentos a apontassem a dedo
e a apodassem de lunática.
Todo o seu labor era devotado ao gérmen da língua
a lançar na terra as sementes dos astros
e com a sua floração despoletar
a revolução dos sentidos.


Texto e fotografia
de V. Solteiro

Um acento do eterno...

"(...) Tudo no mundo era episódico, posto revestisse um acento de eterno dentro da ciclicidade. Muitas gerações andadas, ver-se-iam agros, gente, coisas, o mais iguais àquelas que se pode imaginar. A forma é que as prendia à existência. O mais, desejos, ilusões, vontade ou resignação da vontade perante o absoluto, que era isso?
O homem, qualquer homem era uma peça, por sinal má peça, na relojoaria universal (...)."


Aquilino Ribeiro, in "Terras do Demo"

Fotografia de Viaceslav

Gelometria


A terra vive numa tela
de gigantescas proporções
Amiga das artes e da vulcanologia
ela gira num mar de
geométricas redes

No imorredouro vértice
do subsolo
ela tece um traje de gala

Na semântica aproximação com o gelo
ela despe o corpo de fogo


Texto e fotografia
de V. Solteiro

A vida em (des)equilíbrio...

"As coisas só são pecado quando não são verdadeiras. Só são pecado quando prejudicam os outros. Quando contribuem para o desequilíbrio da vida. Nesse sentido existe pecado. É o desrespeito pelo próximo. É não sermos capazes de ouvir os outros. É querer ter tudo esquecendo que há muita gente que não tem nada."

Lagoa Henriques, escultor

Fotografia de Alexey Polkhirev

Areia escrevedoura


na pele da areia
o mar escreve
um pergaminho dourado

o templo do sol

Texto e Fotografia
de V. Solteiro

Aquilino

"Reconheci quanto havia de panaceia nas nossas doutrinas revolucionárias. A igualdade social há-de acabar por ser o nome duma constelação, a menos que o mundo dos oprimidos se não levante num ímpeto unânime, miraculosamente explosivo, e que para ser eficaz terá de ser consciente. E nestes termos, quando? A máquina, é certo, pode aliviar o escravo; remi-lo nunca. Estou em crer que o homem é fundamentalmente mau e que a luta de princípios não passa dum longo e fátuo escrever na areia. Oxalá me engane!"

Aquilino Ribeiro, in "Andam Faunos pelos Bosques"

Desfolhada

insubmissa aos incandescentes
adjectivos do estio
a folha
navega pelo ar 
a soletrar
o alfabeto do outono

no arpão verde dos ciprestes
pronuncia o embalo dos equinócios

Texto e fotografia
de V. Solteiro


Fio-condutor

desligo o fio
que me liga
á terra. 
aprendo o idioma
do pó e das nebulosas.
voo montado numa pedra
que arremessa o lume
ao coração.

Texto e fotografia
de V. Solteiro

Livro-vivo...



folheio o corpo da montanha
como um livro
vivo.

primeiro, tomo o pulso ao cume
e aos hirtos abetos
que resistem
à brancura da página.

quando por fim estanco
no gume do desfiladeiro
deixo os seixos rolar
pelos dedos de bruma

Texto e fotografia
de V. Solteiro

Os pulsos do prado...


 

rubro
pelo fundo pulmão
do planalto
o garrano
desata nas crinas do vento
a pulsação da folhagem


na sua densa cabeleira
o ar penteia
o enlevo do feno

Texto e fotografia
de V. Solteiro

O re.colhimento dos frutos...

































canto o indizível
a força matriz da vide
na ramada do alento
o chilrear do vento
na copa da tarde

canto
isso me basta
se o fruto não tarda


Texto e fotografia
de V. Solteiro

A língua do mar...

mudo
ante a alterosa
língua do mar
o pescador
de crepúsculos
lança as redes
do olhar
a um cardume
de nuvens


à proa
do azul
tange
a harpa
do silêncio


Texto e fotografia
de V. Solteiro

Ler os afectos...


"A leitura é uma troca de afectos."

Matilde Rosa Araújo


Fotografia de V. Solteiro

Ilumina(cora)ções

"Muitas vezes esquecemos o que gostaríamos de poder recordar, outras vezes, recorrentes, obsessivas, reagindo ao mínimo estímulo, vêm-nos do passado imagens, palavras soltas, fulgurância, iluminações, e não há explicação para elas, não as convocámos, mas elas aí estão."


José Saramago, in "As Pequenas Memórias"

Fotografia de V. Solteiro

Assombraluz


maternal doçura a que emana da tua
sombra.
frondoso o berço de luz em que te deitas.
avassaladora
 a força com que te agarras ao húmus do céu.
o teu esplendor é a prova maior
da insignificância do homem.
nada em ti é vão.
tudo em ti é voo.
amiga árvore, do teu peito ramifica-se
a raiz da dignidade

Texto e fotografia
de V. Solteiro

Tempo para pensar...

"Pára um tempo que fica doendo por dentro e passa por fora]
Pára o tempo do vento que é o contratempo da nossa demora]
Passam dias e noites, os meses, os anos, o segundo e a hora]
E ao tempo presente é que a gente pergunta e agora e agora?]


Tempo, para pensar cada momento deste tempo
Que cada dia é mais profundo e é mais tempo
Para inventarmos outro tempo menos lento
Tempo dos nossos filhos aprenderem com mais tempo]
A rapidez que tem de ser o pensamento
Para nascer, para viver, para existir
E nunca mais verem o tempo fugir


Ai o tempo constante que a cada instante nos passa por fora]
Este tempo candente que é como um cometa com laivos de aurora]
É o tempo de hoje, é o tempo de ontem, é o tempo de outrora]
Mas o tempo da gente é o tempo presente, é agora, é agora]


Tempo para agarrar cada momento deste tempo
Interminável e absoluto rasgo o tempo
Num temporal com os ponteiros do minuto


Tempo para um relógio bater certo com a vida
de um homem bom, de um homem são, de um homem forte]
Que da chegada conseguir fazer partida
E que desperta adiantado para a morte


Tempo para agarrar cada momento deste tempo
Interminável e absoluto rasgo o tempo
Num temporal com os ponteiros do minuto


Tempo para o relógio bater certo com a vida
De um homem bom, de um homem são, de um homem forte]
Que da chegada conseguir fazer partida
E que desperta adiantado para a morte"



"Canção do tempo", poema de Ary dos Santos

Os moinhos do m*ar



incansável migradora
dos re.moinhos de ar
        a gaivina 
despenha-se sobre o berço
das águas
em busca do sustento
com que possa nutrir
o embalo do voo

Texto e fotografia de
V. Solteiro

Estrela desterrada

Estrela não sabia
iluminar
desistências.


Acusada de inapta
e improdutiva
Estrela
distendeu as calejadas
mãos
prenhes de tendinites
com um movimento que
- visto a esta distância -
dir-se-ia insustentável
do ponto de vista
económico-financeiro.


Extenuada pelo desmando
e arbitrariedade
e pelo desregulado rumo
de ruminante
que suas pontas haviam fixado
Estrela
decidiu reunir os astros
no convés da atmosfera
e juntas decidiram
içar a todos os mastros
a seguinte mensagem:


"A indignidade voa
mas Estrela não rasteja!"


Texto e fotografia
de V. Solteiro

Pouca terra...
























na plataforma do escuro
des.espero
pela incandescência
dos carris
por uma febril faísca
que mova
o frio
o fio
da memória


na carruagem
das anémonas
prescruto
a eléctrica tensão
dos dormentes rostos
presos à locomotiva
de um sopro


[senhores passageiros
dentro de momentos
vai dar entrada
na linha número um
o comboio com destino
ao país dos anestesiados]


Fotografia e texto
de V. Solteiro

Entre[a]berto


ardem de desejo
as paredes
ainda que uma fenda
as rasgue
e a ruína se apodere
do seu corpo
a cal teima em ferver
nas brancas órbitas
do postigo

Texto e fotografia
de V. Solteiro

O caminho mais íngreme...



piso o caminho mais
íngreme
para chegar até ti

aos olhos
da pedra
toda a aresta
é flor


Texto e fotografia
de V. Solteiro

Amanha(o)ser...

"A princípio não se sente
O amor - a humidade amanhecendo
O coração ressequido"

Excerto de poema de Daniel Faria, in "Poesia"

Fotografia de V. Solteiro


Maria Azenha: dos bosques, com amor...


"A harmonia foi a minha mãe na canção das árvores e foi entre as flores que aprendi a amar."

Friedrich Hölderlin




"de amor ardem os bosques" é o título do novo livro de Maria Azenha.

Tiragem de 250 exemplares, dos quais 50 numerados e assinados pela autora.

Edição limitada, que não chegará às livrarias!

Para os interessados em reservar um exemplar, o(s) procedimento(s) para o efeito podem ser consultados aqui:

Planta a memória...


"as plantas deslocam-se
fendem a parte granítica da memória"

Excerto de poema de Al Berto,
in "Degredo no Sul"

Fotografia de V. Solteiro

De pés des.atados


aproximam-se...
vêm em passos lentos e
cadenciados.
ao ritmo dos relâmpagos
e das marés.
cantam hinos ao orvalho
e ao vento.
um sagrado rumor
move-se em espiral
na sola dos pés.
os bosques são o seu reduto.
o gelo a sua fortaleza.

Texto e fotografia
de V. Solteiro

Aurora


Para  Aurora

com cirúrgica precisão
acariciou o granizo
que fustigava
as vidraças
do coração 

imune às feridas
que o gelo infligia 
nos alicerces da carne 
bisturi firme nos dedos
removeu
os cacos e os estilhaços

face a face
com o gélido sopro  
sentia com absoluta 
transparência
a pulsação da neve  
a ecoar 
na pura folha
do seu corpo


Texto e fotografia
de V. Solteiro

Labaredas



Avalanche em pleno estio, Celeste absorvia com sofreguidão as nuvens que vogavam céleres nas fundas correntes dos seus pensamentos.
Absorta pelo seu precário e mutável destino, do intrincado novelo que toldava o movimento das mãos, tudo o que retinha eram águas que, supunha, já não moviam moinhos - atalhos de terra batida, veredas de branquíssimos amieiros, lareiras aquecidas pela ternura e pedras sagradas, brilhantes como diamantes.
Dir-se-ia que tudo se esfumara na poalha dos caminhos e que a encruzilhada com que agora se defrontava esmorecera o fogo da procura [a sua demanda]. Nada mais errado...
Lembrava-se, com gozo pueril, do perfume da flor da laranjeira que seu avô plantara no pequeno quintal de casa, do gigantesco tamanho dos cardos que se abeiravam da janela do comboio [e que ela fazia questão de tocar], do sabor adocicado dos grãos da romã a desfazerem-se no céu da boca.
Celeste riu-se dela própria e do tumultuoso rio de dúvidas que a submergira. Agora percebia o valor dos símbolos e a sua intrínseca perenidade. Mós que alavancam o Ser a uma dimensão que estilhaça todas as correias e ampulhetas. Sim, eram esses os frutos que nutriam o sangue com as células da perseverança e da resistência.
De uma golfada, encheu de ar frio os pulmões, susteve a respiração por segundos, e, fitando o trilho por onde subira, fincou os pés na cristalizada rocha do futuro...

Texto e fotografia
de V. Solteiro