O tempo passado...


Que melhor elogio se pode fazer a um livro do que declarar que ele nos ajudou, como uma bóia a um náufrago, a revisitar a infância?!


"(...) Cai a chuva, o vento desmancha as árvores desfolhadas, e dos tempos passados vem uma imagem, a de um homem alto e magro, velho, agora que está mais perto, por um carreiro alagado. Traz um cajado ao ombro, um capote enlameado e antigo, e por ele escorrem todas as águas do céu. À frente caminham os porcos, de cabeça baixa, rasando o chão com o focinho. O homem que assim se aproxima, vago entre as cordas de chuva, é o meu avô. Vem cansado, o velho. Arrasta consigo setenta anos de vida difícil, de privações, de ignorância. E no entanto é um homem sábio, calado, que só abre a boca para dizer o indispensável. Fala tão pouco que todos nos calamos para o ouvir quando no rosto se lhe acende algo como uma luz de aviso. Tem uma maneira estranha de olhar para longe, mesmo que esse longe seja apenas a parede que tem na frente. A sua cara parece ter sido talhada a enxó, fixa mas expressiva, e os olhos, pequenos e agudos, brilham de vez em quando como se alguma coisa em que estivesse a pensar tivesse sido definitivamente compreendida (...)."


in As Pequenas Memórias, José Saramago, pp 129-130, Editora Caminho, 2006

8 comentários:

M.A. disse...

Para além da beleza deste texto, o que me comove é a profunda humanidade de um ser , sábio das coisas da terra...e a memória dos afectos que se prolongam noutro homem...
Obrigada,


***maat

lupuscanissignatus disse...

Olá Maat!

O livro é um tratado sobre a ternura.

Obrigado pelo teu comentário.

Dalaila disse...

Eu sou sincera, nunca li nada de Saramago, às vezes questiono-me porquê, mas depois nas minhas compras acaba sempre por não ser eleição.
Obrigada por este bocadinho!

Memória transparente disse...

Um tratado de ternura, sem dúvida.

lupuscanissignatus disse...

Olá Dalaila!

Vale a pena começar por este livro de Saramago - lê-se com prazer, num abrir e fechar de olhos.

lupuscanissignatus disse...

Olá Mir!

Foi essa a impressão mais forte que retirei do livro "As Pequenas Memórias". Que de pequenas nada têm, tão gigantescos são os sentimentos que ali são destilados...

ॐ Hanah ॐ disse...

Obrigado pela partilha, sempre encontro belas referências...



um super-hiper fim de semana

Beijos oceânicos

Hanah

lupuscanissignatus disse...

Olá Hanah!

Que somos nós sem partilha?

Uma ilha?

Um deserto?

Talvez um ser precário e incerto...

Obrigado. Excelente fim de semana.

Beijos atlânticos