O que vocês não sabem...


"Vocês não sabem
mas todas as manhãs me preparo
para ser, de novo, aquele homem.
Arrumo as aflições, as carências,
as poucas alegrias do que ainda sou capaz de rir,
o vinagre para as mágoas e o cansaço
que usarei mais para o fim da tarde.

À hora do costume,
estou no meu respeitoso emprego.

(...)

Depois, ao fim da tarde,
já com as obrigações cumpridas,
rumo a casa.
À porta me esperam
a mulher, o filho e o poeta.
A todos cumprimento de igual modo.

Um largo sorriso no rosto,
um expresso cansaço nos olhos,
para que de mim se apiedem
e aquele costumeiro morro de fome.

Então à mesa, religiosamente comemos
os quatro o jantar de três
(que o poeta inconsta na ficha do agregado).
Fingidamente satisfeito ensaio um largo bocejo
e do homem me dispo.

Chamo pela Olga para que o pendure,
junto ao resto da roupa,
com aquele jeito que só ela tem de o encabidar
sem o amarrotar.

O poeta visto-o depois
e é com ele que amo,
escrevo versos
e faço filhos."


"O Que Vocês não Sabem Nem Imaginam", poema de Nélson Saúte, poeta moçambicano, publicado no livro intitulado "Nunca Mais é Sábado", Publicações Dom Quixote, 2004

2 comentários:

hfm disse...

Belíssimo! Desconhecia e vou-me pôr em campo.

lupuscanissignatus disse...

Há outras jovens vozes da literatura e da lusofonia que me enchem as medidas e que vale a pena descobrir: Ondjaki, por exemplo...