Íntimo



"Sós
irremediavelmente sós,
como um astro perdido que arrefece.
Todos passam por nós
e ninguém nos conhece.

Os que passam e os que ficam.
Todos se desconhecem.
Os astros não se explicam:
arrefecem.

Nesta envolvente solidão compacta,
quer se grite ou não se grite,
nenhum dar-se de dentro se refracta,
nenhum ser nós se transmite.

Quem sente o meu sentimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem sofre o meu sofrimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem estremece este meu estremecimento
sou eu só, e mais ninguém.

Dão-se os lábios, dão-se os braços,
dão-se os olhos, dão-se os dedos,
bocetas de mil segredos
dão-se em pasmados compassos;
dão-se as noites, dão-se os dias,
dão-se aflitivas esmolas,
abrem-se e dão-se as corolas
breves das carnes macias;
dão-se os nervos, dá-se a vida,
como uma braçada rota
dá-se tudo e nada fica.

Mas este íntimo secreto
que no silêncio concentro,
este oferecer-se de dentro
num esgotamento completo,
este ser-se sem disfarce,
virgem de mal e de bem,
este dar-se, este entregar-se,
descobrir-se e desflorar-se,
é nosso, de mais ninguém."

"Poema do Homem Só", de António Gedeão

2 comentários:

Maria Azenha disse...

Todos, de um modo ou de outro, nos reflectimos neste poema magnífico.
Tem quase a força do Cântico Negro do J. Régio.
Excelente escolha, com toda a subjectividade que isso implica...

Obrigada,

***maat

lupuscanissignatus disse...

António Gedeão foi um daqueles sábios portugueses que nos ensinou a amar essa ciência mágica e indecifrável que é a poesia...