A memória arrancada...


"(...) Dizem os entendidos que a aldeia nasceu e cresceu ao longo de uma vereda, de uma azinhaga, termo que vem de uma palavra árabe, as-zinaik,'rua estreita', o que em sentido literal não poderia ter sido naqueles começos, pois uma rua, seja estreita, seja larga, sempre será uma rua, ao passo que uma vereda nunca será mais que um atalho, um desvio para chegar mais depressa aonde se pretende, e em geral sem outro futuro nem desmedidas ambições de distância. Ignoro em que altura se terá introduzido na região o cultivo extensivo da oliveira, mas não duvido, porque assim o afirmava a tradição pela boca dos velhos, de que por cima dos mais antigos daqueles olivais já teriam passado, pelo menos, dois ou três séculos. Não passarão outros. Hectares e hectares de terra plantados de oliveiras foram impiedosamente rasoirados há alguns anos, cortaram-se centenas de milhares de árvores, extirparam-se do solo profundo, ou ali se deixaram a apodrecer, as velhas raízes que, durante gerações e gerações, haviam dado luz às candeias e sabor ao caldo. Por cada pé de oliveira arrancado, a Comunidade Europeia pagou um prémio aos proprietários das terras, na sua grande maioria grandes latifundiários, e hoje, em lugar dos misteriosos e vagamente inquietantes olivais do meu tempo de criança e adolescente, em lugar dos troncos retorcidos, cobertos de musgo e líquenes, esburacados de locas onde se acoitavam os lagartos, em lugar dos dosséis de ramos carregados de azeitonas negras e de pássaros, o que se nos apresenta aos olhos é um enorme, um monótono, um interminável campo de milho híbrido, todo com a mesma altura, talvez com o mesmo número de folhas nas canoilas, e amanhã talvez com a mesma disposição e o mesmo número de maçarocas, e cada maçaroca talvez com o mesmo número de bagos. Não estou a queixar-me, não estou a chorar a perda de algo que nem sequer me pertencia, estou só a tentar explicar que esta paisagem não é minha, que não foi neste sítio que nasci, que não me criei aqui (...)."


José Saramago, in "As Pequenas Memórias", pp 13-14, Editora Caminho, 2006

4 comentários:

ॐ Hanah ॐ disse...

O pior que até "enxergando" eles não vêem...

Aqui, ali, acolá...


Bom final de semana

Beijinhos Iluminados

Ana Pallito disse...

Arranca-se da terra e da-se ao podre poder.

o texto grita

bikoka

lupuscanissignatus disse...

Olá Hanah!

E assim se destrói o insubstituível património de um país...


Boa semana.

Beijinho verde.

lupuscanissignatus disse...

Olá Ana!

Raízes extirpadas que secam também o nosso Ser...

Beijinho arbóreo.