"da terra vou sabendo o nome inteiro
dos ritos que antecedem a colheita.
podar os ventos, recolher as chuvas,
armazenar as maduras cerejas do granizo.
com as névoas recubro a mancha verde
das oliveiras do pátio.
os tordos retornaram.
catam o vento,
talvez de seu exílio falem,
pelo alfabeto dos longes se relêem.
entre o desejo e a sombra se confundem.
lavrador de silêncios
o coração hesita.
outra colheita o demanda;
pega a terra, nela lança
a úbere semente de mais naves.
pacientemente, sei, esperará
que o tempo recolha em seu celeiro
o fruto mais maduro que lhe couber.
do trigo lembro o verde. o ouro depois.
a emoção compondo o linho sobre a mesa.
solidários, os gestos se repartem.
à cabeceira, tu.
ao centro o pão mais alvo, o vinho.
há palavras que sobre as coisas pairam,
as possuem.
o grande coração da casa aí flui.
como omitir seus signos?
chove ainda. sei que os deuses
virão pelo crepúsculo retomar
as cordas de suas brancas liras d' água alada.
pelo pinhal caminham;
ouve como o vento calou os seus murmúrios.
atendo a seus segredos,
em seus vasos lunares procuro ainda
o grão de areia que diga dos teus passos.
enternecidamente o tomo.
sobre a palma avalio seu peso,
pergunto que caminhos
apontam suas luzes.
tão frágil a distância entre o que ouso
e a clareira de névoa do que sinto!
diz-me tão-só se com os deuses vens;
se a lira que aqui ouço é a resposta
que o coração, atento,
me requer.
precisava uma palavra que contasse
a estranha solidez da esperança.
ou um sentido apenas,
preservado em seu temor mais fundo,
em seu calado embuste.
não tenho. ao corpo cabe sempre
um elo mais que a ilusão prolonga.
por quem vem vou sabendo doutras naves
que ao pensamento aportam
e a territórios mais virgens se abalançam.
contar-te-ei, depois, se tempo houver,
em que floresta ou rio se acendem já
as fogueiras mais rubras das palavras.
preencho a solidão de tua adaga.
mais fundo sempre, o coração o pede.
a cicatriz se fende, o golpe busca.
se ouvires por ti gritar, sou eu que chamo.
diz aos deuses que morro ou que renasço."
"Nona Carta Para Um Deus Ausente", poema de Hugos Santos, Campo Maior, 1939
"Bird in cloud", fotografia de Ola Albert Bjerrang, in http://www.photoforum.ru/
9 comentários:
E este já é um primeiro perfume....
beijo doce
A mim parece-me o frasco todo!
Engano-me?
Abracito
Hanah:
Que o aroma nunca se dissipe...
Beijo de flores.
Ana:
Este é um perfume selvagem, natural, vindo directamente da terra, não se deixa fechar em frascos...:)
Abração.
Tens razão:~)
riquíssimo este poema...
só para citar:
"precisava uma palavra que contasse
a estranha solidez da esperança."
"as fogueiras mais rubras das palavras"
Muito bom.
***maat
rico de aromas que ultrapassam as palavras
Beijo aromático
Olá Maat!
Este é um daqueles poemas que nos acompanha, mão-na-mão, calor intenso, até ao outono da vida...
Bem haja ao Urbano Tavares Rodrigues por nos ter revelado a todos nós esta obra-prima, através do livro "Os Poemas da Minha Vida".
Olá Dalaila!
Nesta romãzeira de palavras, degusta-se o fruto com deleite...
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