e um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé
para ver como é;
enquanto o sangue gorgolejar das artérias abertas
e correr pelos interstícios das pedras,
pressuroso e vivo como vermelhas minhocas despertas;
enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas,
órfãs de pais e de mães,
andarem acossadas pelas ruas
como matilhas de cães;
enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto
com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente,
num silêncio de espanto
rasgado pelo grito da sereia estridente;
enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio
cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas
amassando na mesma lama de extermínio
os osssos dos homens e as traves das suas casas;
enquanto tudo isto acontecer, e o mais que se não diz por ser verdade,
enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia,
o poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade:
ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA"
"Enquanto", poema de António Gedeão, Lisboa, 1906-1997
"Two generations of poverty", de Ainars Brencis, in http://www.photoforum.ru/
8 comentários:
gostei de rever a citação... um pensamento sapiente que nos morde a consciência artística literária
Olá Contornus!
Poesia pura e dura. Morde-nos os calcares; belisca-nos a (in)consciência...
Muitíssimo bom.
Grande impacto.
Um soco no estômago.
CSD
Olá Claúdia!
Este poema é de um poder e de uma beleza demolidora!
António Gedeão no seu melhor...
Réquiem às nossas almas feridas!
Partilhar gritos.
É necessário
Olá Ana!
Sem dúvida... Sobretudo, se esse grito for contra a injustiça e a arrogância do(s) poder(es)...
Obrigado.
enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia,
o poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade:
ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA"
muiiiiiiiiiiiiiito lindo ...
bjin
Bom dia Hanah!
Com alcatrão; com sangue; com vísceras; com revolta; com raiva...
...e uma alegria incomensurável por ser como é!
Beijo outonal.
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