Dos caminhos e ninhos do pensamento...

Não vacila a haste
que semeias
com mãos prenhes
de futuro

É fundo o veio
que a sustenta

Absorve o perfume
que os teus passos
movem

São eles que cultivam 
o chão de jardins
de estrelas


V. Solteiro

Tempo inquinado

Fotografia de Aloha

























Este é o tempo presente
envenenado pelo arpão da cobiça
ferido pelo gume da iniquidade

Este é o tempo ausente
contaminado pela cinza do cinismo
vergastado pela poeira da hipocrisia

Este é o tempo amarrotado
           o tempo da mudez infligida
           o tempo da pequenez altiva

Este é o tempo do fruto macerado
           o tempo da semente calcinada
           o tempo da palavra rasgada

Tempo raso

Onde até a água das lágrimas
nasce inquinada

V. Solteiro

Os estilhaços do sol


No espelho de sal
quebro
o elo da frágua
o eco da mágoa

Vergo o corpo
em rotativa inflexão
com os estilhaços
do sol


Texto e fotografia
de V. Solteiro

O tron[c]o do outono


Quando a folha
cai
levanta-se o chão
vestido de madre-pérola


Assim o dedo nu
ao florir
no arco do peito 


Texto e fotografia
V. Solteiro


Usu*fruto

Reappearance of Affinity, Olbinski
Na orla do crânio
fica o pomar
da infância
epicentro
de assomos
e de assombros

Fértil leira
onde o fruto
se recusa
a envelhecer
curvado

Texto de V. Solteiro

A espera



Heavy clouds, John Aavitsland
 

















Os olhos da terra
adensam-se de nuvens
quando o céu
vergado pela monção
não suporta mais
a espera


Texto de V. Solteiro



A pulso


Soul, de Irina Z.


















Toma o pulso aos objectos que gravitam no coração da treva. Ausculta-lhes os sinais vitais.
Também eles sussurram às paredes os seus desvarios.
Também eles projectam as suas sombras ao entardecer.
Decifra o mistério do sangue no poente.
Descodifica-lhe as coordenadas que conduzem à sua irradiação.
Tudo se constrói pelos veios da luz. Pelos êmbolos da claridade.
Não é o teu corpo um ponteiro escuro e frio à espera de corda para se erguer na haste do dia?


Texto de V. Solteiro

A.linha

Going back home de Berenice Kauffmann Abud


Sonâmbulas
aturdidas de sono e de cansaço
as suburbanas andorinhas
estilhaçam as pálpebras do céu
com seu voo elíptico e rasante

 

no reflexo de um outro olhar
buscam a geometria
que alinha as asas ao futuro


Texto de V. Solteiro


Sinais de fumo



Smoke, de Dmitry Starostin

Na bolsa a tiracolo
carrego o peso do mundo:
uma pacotilha de filtros, mortalhas,
algum tabaco de enrolar.


Quando o caminho me toma
no regresso a mim
costumo fazer 
sinais de fumo.


Texto de V. Solteiro


A pedra



(a meus pais)


Com a enxada da palavra
cavo a leira dos rebentos.
Por vezes, a lâmina das sílabas
faísca numa pedra mais agreste 
escondida debaixo da terra.
Apanho-a e perscruto-a
com curiosidade de geólogo.
É uma pedra de múltiplas faces.
Contudo, só uma reluz quando lhe toco.
Mas é a aresta mais obscura e rugosa
a que me interpela.

Texto e fotografia
de V. Solteiro


uma letra só


Water Alphabet de Abelardo Morell
  
uma letra só
não aguenta
a complexidade
da lágrima

uma letra só
não sustenta
o labirinto
da razão

uma letra só
verga ao peso
do alfabeto

letra-viva
ela balança o sol
transfigurada
num simples gesto


Texto de V. Solteiro


Chegada é a partida...


Victor Todorov




















à boca do túnel
nos carris d'ouro
irrompe a locomotiva do afago
pirilampo de fumegantes trajectos e dialectos - refulgente metal
onde o vapor nunca se evola


Texto de V. Solteiro

Nos lábios ferve um país


John White



















Alimenta o lume
que sacia a sede
de justiça

Com mãos firmes
ergue o cântaro
com o mosto
da indignação

Brinda ao futuro
com a taça
da fraternidade

Nos lábios
ferve um país
sedento
de liberdade

Texto de V. Solteiro



Re.acção

Elena Oganesyan

"Às vezes, faz falta uma revolução. Na falta dela, faz falta gente – volto ao princípio... – que, com a lucidez e a coragem necessárias, seja capaz de provocar reacções. Quando se provoca, obriga-se o provocado a pensar, é meio caminho andado para dar um passo em frente."

José Saramago

Há os que fingem...

Stefan Andronache


"Há os que fingem ignorar a realidade; há os que a desfiguram e nessa desfiguração encontram um universo onde se refugiam; há os que pensam que a melhor forma de resolver os problemas é afastá-los para longe. Há tudo isso, nesse mundo diverso e dicotómico que se desdobra entre a realidade e a ficção."


Fernando Paulouro das Neves, in Jornal do Fundão

[a]corda

Sem sombra de pudor
sonegam a ínfima luz que resta.
Enterram-na no mercado do estupro
e do estupor.
No alçapão dos espoliados
escondem um país que jaz.
Tecem loas ao vácuo
que faz vibrar
a corda dos desesperados.


Texto de V. Solteiro

Fotografia sem título de Irina Pidova

Do fundo [não se vê o fundo]


O fundo perguntou ao fundo
se no fundo
ele queria ser
lacaio ou carrejão.

O fundo, mirando-se ao espelho,
do fundo disse:

- 'Já que o poço
nos cobra aos dois
até o próprio pescoço
deixa ao menos
que eu seja a corda
que os morde
até ao osso!'

Texto de V. Solteiro

Fotografia de Xviper - "It is all about money"

A treva e o trevo...


Semeia até onde a vista alcança.
Arranca a treva e colhe o trevo.
Ceifa a desesperança.

Nas tuas mãos cresce
o trigo da mudança.

Texto de V. Solteiro

Fotografia de Vincent Dimitriov - "Wheat, clouds and bright blue sky"

O caule e a cal...



























Não cales o sangue que corre
na nuvem do gesto.
Com mãos de cal
rasga a folha que ainda verte
o canto da trégua.

Fulmina os dedos
da tempestade!

Nas veias do relâmpago
há uma língua que se refaz.
No caule da saliva
há um pulso que não se aquieta.

Texto e fotografia de V. Solteiro

[a]Fiar o tempo


centelha de luz
desfiando
a colcha do tempo
a borboleta
desenha na íris
a branca asa
do linho


Texto e fotografia
de V. Solteiro

Edgar Carneiro: irmão do mar, filho dos montes...


"Desaperto as grades
Com a mão segura
E liberto as aves.

Elas sobem tontas;
Rodopiam livres;
E, serenas, partem
Para além dos montes.

São apenas pombas,
Ou a profecia
De mudança breve?

Entretanto, espero;
E na tarde fria
Vai ardendo a neve."


"Mudança", poema de Edgar Carneiro, in "A Faca no Pão", edição & etc - Publicações Culturais Engrenagem, Lda., 1981

http://nota20.webege.com/jan2011_n02_p01_m.html

Fotografia de Filipe Couto - http://www.espinho.tv/

Casa-mãe

Escuta atentamente o coração das coisas inanimadas.
Repara como se inclinam à passagem dos astros.
No dorso da casa, mãe, os objectos vibram
a membrana de uma asa, o golpe de um navio.

Vê com as tuas próprias mãos.

Os alicerces do corpo rangem ainda a ausência dos cálidos gestos.
Fendas de luz que não me deixam partir.

Texto de V. Solteiro

O nome das nuvens

Finda o dia
na pálpebra da nuvem
e já a estrela polar
olhar cativo na combustão
do corpo celeste
clama pelo solstício
do teu nome

Texto e fotografia
de V. Solteiro



À volta...

Ainda que tudo à volta
desfaleça
e te pareça mudo
há sempre um rumo.

Sabes:

Também a rosa
cresce a prumo.




Texto de V. Solteiro

Fotografia de Svetlana Vollevskaya