Não mate a Poesia, não?



"Não! A Poesia não!

- Senhor tão bem vestido,
com a noiva pela mão,
de gravata cinzenta,
bengala de castão,
e uma doçura lenta
na voz de comoção:
não mate a Poesia, não?

Olhe que ela rodeia
os seus passos na areia.
Fechada, emparedada,
sobe consigo a escada.
E está sentada á mesa.
Não lhe chame tristeza...
Oh, não lhe chame nada!...

Era um país de inverno
e o senhor tinha frio.
A Poesia era longa,
corrente como um rio.
De chuva os seus cabelos,
abrindo-se em novelos
para os caudais do rio...

Era um país de espanto
e o senhor teve medo.
E deitou fogo à casa
erguida num rochedo,
e viu arder, correcto,
as asas transparentes
- as asas, não: o tecto.
E os braços estendidos
da sala, sem ruídos.
E os livros espalhados
nos cadeirões pasmados.
E viu-a procurar,
por entre as alamedas,
os olhos aguçados
das altas labaredas.

Era um país de inverno
e o senhor tinha frio.
A Poesia era longa,
corrente como um rio.
A Poesia era triste,
tão débil como um fio.

Era um país de espanto
e o bom senhor partiu..."


Poema do Bom Senhor, de Natércia Freire, in "Anel de Sete Pedras"

2 comentários:

Maria Azenha disse...

Obrigada por trazeres Natércia Freire, tão pouco relembrada.


***maat

lupuscanissignatus disse...

Confesso que a desconhecia, bem como, à sua obra...o que é imperdoável!

Estou, aos poucos, a tentar re-descobrir grandes poetas portugueses que a voragem do tempo se encarregou de arrumar no limbo...

Neste tempo de competitividades bacocas e serôdias, sabe bem dar uma vista de olhos ao passado. Para descobrir, afinal, quem somos...