Há dias assim...



O dia
acontece
no lugar
mais recôndito
e inabitável

O dia
cresce
na geografia
mais incerta
e inóspita

O dia
floresce
na corola
de uma estrela
ou na pupila
de um guarda-rios

O dia
enternece
quando bate asas
na liberdade
de um cometa
que voga
pelo pensamento

até já ser noite


©Vítor Calé Solteiro

Marítimo corpo





Rios de ternura
sulcam a pele
rugosa
da maré
em influxos
e refluxos
lentos e
frontais

Revolvem
o fundo do oceano
em meticulosas
e insondáveis
descobertas

Conchas búzios e corais
de belas e estranhas
geometrias
afloram à superfície
em golfadas de respiração
suspensas pelo brilho
da aurora

Ao longe
o ardor
trémulo
do farol
fustiga
o temor

É ele que
em noites de tempestade
guia o salino corpo
pelo magma incandescente
da corrente dos afectos


©Vítor Calé Solteiro


Luz e sombra





Um raio de luz
oblíqua
adormeceu
sobre as nervuras
dos rochedos
e derramou-se
em fios de sombras
pelos seus interstícios

com um riso pueril


©Vítor Calé Solteiro


Meridianos do firmamento


Que luz cristalina
nasce nas profundezas 
do rio?

Que vaporosas sombras

desenha o barco ao espraiar-se
pelas margens do quotidiano?

Que ramos tece a vida

ao enternecer o corpo 
já gasto pela usura dos dias?

Nunca duvides de ti

e do firmamento que desenhas
com gestos de Boticelli

Existir é já resistir


©Vítor Calé Solteiro


O.caso





A nuvem pousa os lábios
na sombria face da montanha

Com seus tentáculos impregnados de ar
enlaça a aresta 
onde não tarda
principiará a clarear

©Vítor Calé Solteiro

Andorinha-do-mar


Em cada
nascente
o recomeço

Em cada
poente
uma muralha
de bruma

Assim é a viagem dos pássaros
Assim é a miragem do homem

Buscar asas
para outro chão


©Vítor CaléSolteiro
Fotografia de Armindo Alves
armindoalves.blogspot.pt/